Jorge Matine, Investigador do Centro de Integridade Pública de Moçambique, fala sobre o papel e os desafios da sociedade civil na monitoria da Ajuda Pública ao Desenvolvimento, e como é que os governantes devem encarar a cultura de prestação de contas. Fala ainda sobre a importância de monitoria das políticas públicas pela sociedade civil enquanto um mecanismo de acompanhamento da governação em São Tomé e Príncipe.
Sociedade Civil STP: Quando falamos da ajuda pública ao desenvolvimento, estamos a falar de quê?
Jorge Matine: Estamos a falar dos recursos que o Estado mobiliza através dos seus parceiros de desenvolvimento, neste caso os doadores que são parceiros bilaterais e multilaterais. São países e organismos internacionais que colocam à disposição do Governo ou do Estado recursos que podem ser em forma de dinheiro, capacitação técnica, em forma de género, através do Orçamento Geral de Estado.
SCSTP: Qual é a importância da monitoria para a sociedade civil enquanto um mecanismo de acompanhamento da governação?
JM: Todos os recursos que entram para o OGE visam satisfazer as necessidades da população, através de programas, projectos, seguindo alguma estratégia de luta contra a pobreza. É importante entender como é que esses recursos são utilizados. São recursos que o Governo recebe de doadores e recursos captados internamente, através de impostos e outro tipo de receita. É preciso que a sociedade civil perceba como é que a utilização desses recursos está alinhada com as prioridades do desenvolvimento. Normalmente, alguns recursos respondem a agendas globais de desenvolvimento, como por exemplo as metas do milénio. Mas também há recursos que devem estar alinhados com as prioridades do desenvolvimento local. Há outros indicadores que devem ser verificados na execução desses recursos, como a eficiência, eficácia e os resultados que se espera dessa execução. Esta avaliação visa entender qual é a arquitectura desses recursos, qual é a complexidade que esses recursos possam ter para a governação e qual é a ligação em relação às políticas públicas. É preciso também analisar a economia política a volta desses recursos. Significa ver o fundamento da aprovação desses recursos e como é que a aplicação dos recursos respondem às agendas do país. Por exemplo a agenda da expansão do Ensino Primário, a agenda Sistema de Saúde, a agenda da protecção do ambiente, a agenda do desenvolvimento do capital humano, agenda de melhoria de prestação de contas, etc. Através desses recursos, podemos ver qual o volume do dinheiro que recebe.
Partindo da experiência de outros países, a sociedade civil pode seguir determinadas metodologias para monitorar recursos públicos. É importante conhecer os desafios que esse tipo de exercício traz para a sociedade civil e mapear as instituições que têm informações importantes para esse exercício. Esse trabalho implica revisão de literatura, identificação de fontes de informação, entrevistas, etc.
SCSTP: Em que se baseia esse exercício?
JM: Baseia-se muito em documentos oficiais, como o OGE, o relatório de execução, o relatório de Tribunal de Contas, os memorandos que existem entre o Governo e os doadores, os acordos, etc. É um grupo de documentos que deve ser recolhido, analisado e sistematizar as informações. Depois, faz a comparação entre os anos para ver se houve aumento ou decréscimo de investimento, se foi influenciado por um contexto internacional ou interno, por exemplo as eleições, demografia, grandes transformações sociais.
SCSTP: Quais são os desafios a superar nesse tipo de exercício?
JM: O maior desafio na monitoria das políticas públicas é o acesso à informação. Primeiro é ter informação disponível. Segundo é ter informação disponível em formato possível de ser recolhido. As vezes, há informação disponível no site de uma determinada instituição, mas que não é possível tirar. Mas também pode ser que a informação esteja no formato físico. Há muita burocracia para termos permissão ao acesso a essa informação. Outra dificuldade é criar um entendimento entre os vários intervenientes sobre a função dessa informação que será disponibilizada. Nós entendemos que as informações sobre a gestão dos recursos públicos não visa avaliar o desempenho das instituições, mas sim ter conhecimento sobre a ligação dos recursos com as políticas públicas. Essas são as grandes dificuldades que marcam esse tipo de exercício. De acordo com os desafios encontrados, é preciso desenhar novas formas de trabalho para que a ajuda seja eficiente e melhor executada em relação aos anos anteriores. Assim, o diálogo entre o Governo e os doadores pode ser melhorado. Porque pode ser também que as condicionantes postas pelos doadores não permitem que o Governo atinja determinadas metas. Mas também pode acontecer que o Governo não tenha capacidade de absorver toda a ajuda disponibilizada pelos doadores. Pode ser que o tipo de ajuda disponibilizada não é adequado tendo em conta a capacidade das instituições e os desafios que o país apresenta.
SCSTP: Monitorar é fundamental para que os gestores públicos entendam que estão a ser vigiados e que não podem agir de maneira que querem. Como é que essa relação se deve estabelecer?
JM: Primeiro, é preciso entender que monitoria é feita ao orçamento público, ou seja ao orçamento que pertence a todos nós que contribuímos com o pagamento dos impostos. O orçamento é um documento técnico e político. É um documento de interesses das vontades. Esses interesses políticos, sociais, comerciais, industriais, financeiras, etc, giram a volta do orçamento. Então a sociedade civil também tem seus interesses no orçamento. Um dos interesses é melhoria da prestação de contas e a boa governação, participação, além da melhoria da aplicação de recursos para responder às necessidades da população. Monitorar o orçamento é também um exercício contínuo de verificar se os interesses pelos quais o orçamento foi aprovado estão a ser satisfeitos.
SCSTP: A cultura da prestação de contas é pouco evoluída na nossa sociedade. Como é que isso deve ser encarado pelos dirigentes e pela população que é o dono de bens públicos?
JM: É uma questão muito complexa. A cultura política é que os governos sabem tudo. Nos países como os nossos, a política tomou a dianteira como que ela soubesse tudo. Pelo seu sentido paternalista em que os nossos dirigentes acham que sabem tudo o que o queremos e precisamos. Os políticos foram construindo a ideia de que são eles os Messias: acham que podem salvar o povo. Mas fazem isso com dinheiro público. A outra parte disso é pouca compreensão dos dirigentes de que o dinheiro público é resultado das contribuições de cada cidadão. É um dinheiro que é usado pelos políticos para fazer promessas. Os políticos candidatam-se com promessas de fazer algo com dinheiro público. Ele não vai usar o seu dinheiro para cumprir as suas promessas eleitorais. É com o dinheiro público. A sociedade civil deve entender que monitorar a aplicação desse dinheiro é muito importante. É a maneira de tornar a utilização de recursos mais transparente. Quanto mais transparente, menos perda, maior capacidade de execução e canalização de recursos para responder as necessidades advindas do contrato social. O político deve entender que faz parte da cultura da boa governação ele ser alvo de questionamento sobre como ele gere o bem público. É uma situação em que os políticos devem criar ambiente necessário para que essa prestação seja mais transparente possível, criando espaço de diálogo com a sociedade civil, disponibilizar informação, ouvir os interesses das partes interessadas no contrato social, etc. isto concorre para maximizar um recurso escasso. Há neste caso uma concorrência entre as vontades que giram a volta do orçamento. É necessário criar um bom ambiente para que essa disputa seja justa e que permita que o país avance.
SCSTP: Até que ponto o CIP tem contribuído para uma boa governação em Moçambique?
JM: Pensamos que somos parte de muitos que concorrem para a boa governação em Moçambique: desde políticos, associações de profissionais, empresários, professores, etc. Cada um com a sua agenda e de acordo com os interesses que pretendem defender. O CIP tem um papel muito importante que é exposição da corrupção e também na criação de mecanismos que permitam maior transparência propondo leis sobre a gestão de bem público, conflito de interesse, a justiça fiscal, etc. Contribuímos com diálogo, instrumentos, interpelações ao Governo pondo à disponibilidade dos parlamentares informações importantes para tomarem decisões.
SCSTP: Como é a relação entre o CIP-Moçambique e o Governo?
JM: Depende muito dos dossiês. Entre a sociedade civil e o Governo há uma relação de poder muito desigual. O Governo conta com especialistas: assessoria dos advogados, empresas de especialistas, etc. A sociedade civil não tem nada disso. É preciso entender que muitas vezes a relação é muito boa quando os interesses são convergentes. Muitas dessas relações resultam de um mau entendimento que as partes têm sobre as outras. Os políticos e as instituições públicas têm dificuldade de entender o verdadeiro papel da sociedade civil. Por exemplo, uma das grandes criticas que se ouve é que a sociedade civil parece partidos políticos. É preciso dizer que a lei de partidos políticos é muito clara na maneira como se caracterizam partidos políticos. Por outro lado, a lei das associações é clara na maneira como se caracterizam as associações. Significa que há um entendimento errado. Os políticos não têm conhecimento claro sobre as leis que tipificam cada um desses agentes. O orçamento é político, mas a consequência da má gestão não cai apenas sobre os políticos. A sociedade civil deve interagir como Governo mostrando o seu verdadeiro papel e objectivo. Não é substituir o espaço legítimo dos políticos de competição entre eles. A sociedade civil pretende que a partir do momento em que o político faz uso do recurso público para implementar o que foi o seu programa eleitoral, terá que prestar contas. É aqui onde reside a grande falta de clareza.
SCSTP: Como o passar do tempo os Governos estão mais abertos?
JM: Isso tem muito a ver com a natureza da democracia. Para nós, a democracia é um processo novo. A cultura política e o quadro legal devem permitir que os atores tenham espaço de actuação. Depois é o quadro institucional. Até que ponto as instituições reconhecem o espaço de discussão da sociedade civil no debate público. Depois há também aqueles actores que são externos mas que têm grande influência nas decisões que tomamos internamente. Um país em que 90% do seu OGE é financiado pelos actores externos, significa que suas agendas de desenvolvimento têm uma grande influência dos doadores. As instituições também precisam ser suficientemente maduras para entender que é necessário o compromisso com a transparência e com a boa governação. O quadro legal deve proteger a actuação de vários actores enquanto um direito, para não se sintam intimidados. Muitas instituições em África são avançadas em termos de proteger o direito de participação de todos. Depois há a arquitectura institucional que muitas vezes não permite que o cidadão tenha acesso a informação porque entre as instituições não há coordenação e o cidadão anda de um lado para o outro para ter uma informação que devia estar numa única instituição. Acredito que com o passar de tempo há mais abertura, porque é melhor para todos.
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