quarta-feira, 15 de agosto de 2018

"AS DINÂMICAS LOCAIS DA SOCIEDADE CIVIL DEVEM SER APROVEITADAS”

O Presidente da Fundação para o Desenvolvimento e Intercâmbios Internacionais de Cabo Verde, Victor Borges, fala sobre a capacidade e os desafios da sociedade civil na implementação das políticas públicas e como é que esse actor deve organizar-se para o diálogo profícuo com o Governo. Fala também sobre a necessidade de um maior comprometimento e responsabilização dos líderes africanos perante as populações que os elegeram.

Sociedade Civil STP: Que diagnóstico faz da sociedade civil, nos PALOP, em termos da sua capacidade na implementação de políticas públicas? Quais os seus principais desafios?

Victor Borges: Para ser franco, eu não saberia fazer esse diagnóstico. Todavia, a minha impressão é que a sociedade civil tem progredido muito bem nos últimos anos, sobretudo a partir dos anos 90 com a introdução da democracia nos diferentes países. Isto permitiu criar espaço social, político e psicológico para a afirmação e o desenvolvimento das organizações da sociedade civil. Acredito também que entre os diferentes países, há experiências diferenciadas. Em alguns desses países, as organizações da sociedade civil estão muito mais desenvolvidas e ocuparam muito mais espaço na vida social, económica, política e cultural, noutros muito menos. Acredito que não há uma situação homogénea para todos os países.

SCSTP: Há muito trabalho a fazer para que os países estejam todos no mesmo patamar?

VB: Não sei se é um objectivo razoável que estejam no mesmo patamar. O que me parece bom, em todos esses países, é que as pessoas, as organizações de base, as organizações representativas da sociedade civil possam trabalhar para conquistar esse espaço e conquistar um sentimento de utilidade pública por parte das populações e das entidades públicas. 

SCSTP: Como é que vê a democracia nos PALOP? 

VB: Outra pergunta difícil. A situação é muito genérica e diferenciada que não é possível responder para todos os países. Tenho que ser honesto. O meu conhecimento sobre esses diferentes países não me permite falar com propriedade. Eu tenho ideias que me vêm de contactos com amigos, cidadãos, colegas de trabalho desses diferentes países. Acho que, em termos formais, todos esses países fizeram um avanço enorme criando regimes democráticos, consagrados em textos constitucionais. É um aspecto positivo que cria um ambiente de liberdade e dá as pessoas a sensação de que podem ser cidadãos livres. Tem havido eleições regulares nesses países, com excepção da Guiné-Bissau que tem conhecido uma evolução diferenciada por causa da instabilidade política que tem perturbado muito o funcionamento da democracia com golpes de estado. 

De uma forma geral, os países vão fazendo, com velocidades diferenciadas, esta caminhada para a democracia. Não podemos dizer que a democracia seja só ter uma constituição e realizar eleições. A democracia deve ser também uma forma diferente de fazer política, deve significar mais tolerância entre os actores políticos e sobretudo maior responsabilidade e comprometimento com os desafios das diferentes sociedades, sendo que, de entre esses desafios, a questão do desenvolvimento é fundamental. Porque as sociedades abraçaram o ideal da democracia também no pressuposto de que a democracia iria trazer mais desenvolvimento, a satisfação das necessidades básicas das pessoas e oportunidades para o crescimento pessoal e mais liberdade. Portanto, a democracia formal com as eleições, para ganhar ou reforçar a sua credibilidade, tem que poder responder às necessidades e às expectativas das populações. De outra forma, ela poderá rapidamente perder credibilidade, porque as pessoas vão se perguntar: de que me vale votar se na realidade os meus problemas não ficam resolvidos? Esta é uma interpelação para a sociedade e os actores políticos que deverão, em todos os países, em toda a África, se sentir muito mais comprometidos, responsáveis e responsabilizados perante as populações que os elegeram. 

SCSTP: Como é que a sociedade civil deve organizar-se para participar na governação?

VB: Eu acho que aqui não pode haver receitas. As dinâmicas locais da sociedade civil devem ser aproveitadas. Acredito que estas organizações, em vez de seguirem modelo abstracto, consigam se organizar de forma inovadora, aproveitando as dinâmicas que existem no terreno. Deverão todas evoluir para alguma formalização e poderem se agrupar e agirem em conjunto para serem parceiros credíveis perante as autoridades políticas.As organizações da sociedade civil não devem existir para substituir os actores políticos que serão sempre actores de primeiro plano no contexto de desenvolvimento, mas deverão se afirmar para serem parceiros dos actores políticos na resolução conjunta dos problemas das pessoas. 

SCSTP: A sociedade civil é, muitas vezes, interpretada como opositor aos governos. Que relação deve existir entre a sociedade civil organizada e o poder governamental? 

VB: A percepção de que a sociedade civil é opositora dos partidos e dos governos é errada. Eu acho que todos têm um propósito comum: desenvolvimento, segurança, bem-estar das pessoas… Como a política não é ciência, poderemos ter abordagens distintas. A acção do governo deve ser objecto de avaliação por parte dos outros. Eu acho que em contexto de democracia, e tomando em consideração que as organizações da sociedade civil são parceiras, quando as críticas aparecem, não as devemos negar, mas tomá-las como uma interpelação amiga para ajudar a resolver os problemas. Tanto as organizações da sociedade civil e os actores políticos deverão estar comprometidos com essa ideia de bem-estar das pessoas, satisfação das necessidades básicas, desenvolvimento, etc. Poderemos não estar de acordo sobre tudo e não temos que estar, por que às vezes não é possível. Mas a democracia permite-nos fazer diálogo sereno e tranquilo, independentemente das diferenças dos nossos pontos de vista. Normalmente, o que acontece é que quando a sociedade civil é interpeladora da acção governamental, independentemente de ter ou não razão, se o governo prestar atenção, normalmente acaba melhorando as suas práticas. Mesmo aqueles que nos querem mal, nunca nos fazem críticas atoa. Tem sempre um ponto onde pegam, normalmente misturando verdades e mentiras. Se prestarmos atenção e dialogarmos com as pessoas, a percentagem de verdade que eventualmente possa existir, ser-me-á útil, estou a falar na posição de um governante, para eu melhorar a minha acção e forma de agir. 

A sociedade civil e o governo têm papéis distintos e complementares para que as sociedades democráticas consigam resolver os seus problemas. Acho que quem está na política acaba tendo maior visibilidade, porque o nosso nível de desenvolvimento nos diferentes países africanos, o governo está de longe superior à posição dos governos nos países desenvolvidos, onde o sector, os actores da sociedade civil são entidades robustas. Portanto, a enfâse que acabamos dando aos governos ilustram também o nosso nível de desenvolvimento. É preciso dizer que todos são necessários, mesmo quando não estamos totalmente de acordo em tudo. Eu costumo dizer que é bom pensarmos nas nossas experiências familiares para nós desenvolvermos o nosso sentido de tolerância. Por exemplo, podemos não estar de acordo com os nossos filhos e eles não estarem de acordo connosco. É muito normal. Mas não deixamos de os amar. Pensando sempre neste exemplo, rapidamente crescemos no nosso nível de tolerância para ouvirmos as pessoas com tranquilidade. Cada um deve assumir plenamente as suas responsabilidades. 

SCSTP: A sociedade civil em geral é uma força importante na formulação e implementação de políticas públicas. Como melhorar a interacção entre a sociedade civil e os governos? 

VB: Em contexto de democracia, o governo acaba sendo um actor central na formulação e implementação das políticas públicas. Mas a democracia nos ensina que a vida de uma sociedade não se esgota no governo. Todas as políticas públicas devem ter como o piloto principal o governo que deverá também criar espaços para que a sociedade civil participe na formulação, na implementação, no seguimento e na avaliação. E assim, tudo deverá resultar de forma muito mais eficaz. A cultura política dos actores políticos é fundamental para que tenhamos essa convivência pacífica com os actores da sociedade civil que não são necessariamente seus inimigos. Se pensarmos dessa forma, teremos um aliado importante, porque determinadas coisas que feitas pelo governo dão mais trabalho, levam mais tempo e custam mais dinheiro. Envolvendo a sociedade civil, poderemos ter os nossos objectivos atingidos muito mais rapidamente. Por outro lado, os actores da sociedade civil, participando na implementação, seguimento, e avaliação das políticas públicas, criam para si uma oportunidade de desenvolvimento pessoal, profissional, social e até político. Portanto, o enriquecimento da sociedade vai resultar na interacção entre esses vários actores e não na lógica de que estamos aqui e vamos fazer tudo sozinhos. Ou então criticar tudo e estar contra tudo o que governo faz, pelo facto de estar na sociedade civil. É preciso encontrar esse diálogo na implementação das políticas. Estou convencido de que se esse diálogo for feito com sinceridade e honestidade, todos saem a ganhar. 

SCSTP: No caso de STP, muitas vezes, a sociedade civil é chamada para validar os planos, mas não para a sua formulação. O que de certa maneira é uma negação ao verdadeiro papel da sociedade civil. Qual deve ser a estratégia para inverter esse quadro? 

VB: Eu não posso falar com propriedade do caso específico de São Tomé e Príncipe. Mas é preciso dizer que a Administração Pública dos nossos diferentes países são organizações também com fragilidades. Fragilidades técnicas, profissionais, etc. E então, se as pessoas não estiverem devidamente capacitadas para entenderem que faz parte do jogo e regras de formulação de políticas, que aliás garante o seu sucesso e aceitação, essas pessoas dificilmente se lembrarão de chamar a sociedade civil. Eu tendo a interpretar a ausência de abertura para a sociedade civil não como uma intenção ou coisa pensada, mas como reflexo das fragilidades das próprias organizações, que provavelmente não terão entendido ou não saberão trabalhar com as organizações da sociedade civil. E aqui, nitidamente, para mim este desafio, que é valido tanto para São Tomé e Príncipe como para outros países, que é a necessidade de reforçar as capacidades técnicas, profissionais e as capacidades de liderança dos quadros da Administração Pública, para poderem estar à vontade para trabalhar com todos os actores.
Não vale a pena culpabilizá-los se ninguém os ensinou a fazer esse trabalho de grupo. Se nos limitarmos simplesmente na crítica, criamos uma situação de bloqueio: eles contra nós e nós contra eles. Eu acho que a solução está no diálogo fecundo entre esses dois actores porque as sociedades, de uma forma geral, votam e escolhem os seus representantes, mas os governos não escolhem os actores da sociedade civil que tem autonomia. Portanto, aqui só há um caminho que é o caminho de diálogo. E para dialogar, não precisamos estar de acordo, porque seria fácil demais. Se estamos de acordo para quê dialogar? O teste da nossa capacidade de diálogo e a nossa tolerância é quando não estamos de acordo. E quando não estamos de acordo é que devemos mostrar a nossa capacidade de negociação, persuasão e de mobilização. E isto é válido para os dois lados. 

SCSTP: E qual é a realidade de Cabo Verde neste aspecto? 

VB: Não deve ser muito diferente da realidade santomense. As organizações da sociedade civil em Cabo Verde já fizeram um grande progresso. Existe a plataforma das ONG com muitas organizações inscritas e que progressivamente vão ganhando espaço, com a ajuda da comunicação social e da qualidade da sua intervenção. Pouco a pouco, começam a influenciar as políticas públicas, mas ainda há um longo caminho pela frente. Eu sei do que estou a falar porque passei 8 anos no Governo de Cabo Verde e sei que não há cultura política para esta gestão aberta com a participação da sociedade civil. A própria sociedade civil pode não ter melhores canais para o diálogo com o poder político. 

SCSTP: Como é que vê a problemática das lideranças e da formação na sociedade civil? 

VB: Aqui há um desafio enorme para Cabo Verde e acredito que também para São Tomé e Príncipe. É preciso um esforço permanente de capacitação das lideranças porque elas não acontecem espontaneamente, contrariamente ao que se acredita. Ninguém nasce líder. A gente cria oportunidades para uns e outros poderem desenvolver as suas capacidades. É por isso que programas de capacitação permanente de recursos humanos, de dirigentes, da Administração Pública, das organizações da sociedade civil são fundamentais. Cabo Verde teve no passado um plano de qualificação de quadros da Administração Pública, mas não foi implementado. Pensar que a pessoa pode ter conversa bonita e automaticamente está capacitada para ter responsabilidades de liderança, é uma falácia enorme. Para assumir plenamente as responsabilidades de liderança, é suposto termos um conjunto de competências. E essas competências não são transmitidas nas Universidades. É este um dos aspectos mais gritantes da situação dos nossos países que tem a ver com o processo de recrutamento e nomeação de quadros e dirigentes da Administração Pública. Em Cabo Verde, eu costumo dizer que esgotamos as nossas práticas de nomeação de dirigentes, no sentido em que são levados em conta o diploma e os anos de experiência que ninguém avaliou. Nomeamos alguém com 4/5 anos de experiência para cargos de responsabilidade e vamos rezando para dar certo, e normalmente não dá. 

O que eu acho é que antes de essas pessoas serem nomeadas para esses cargos, deveriam ser submetidas à programas de capacitação prévia para poderem assumir as responsabilidades da função com esperanças e probabilidades de sucesso. O que acontece é que a pessoa é colocada sem ter esta capacitação, e quando começa a apreender, depois de cometer vários erros, o seu tempo acabou. E nomeamos um outro porque este não serve. Mas também não capacitamos o outro e ele vai fazer o mesmo percurso. É por isso que às vezes as pessoas dizem: já tentámos de todas as formas e não está a dar certo. Não estamos a encontrar a pessoa certa. A pessoa certa não existe na natureza. A pessoa certa deve ser forjada através da capacitação e do apoio.

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