Presidente da Câmara de Caué, Américo Pinto, fala sobre a execução orçamental da Câmara de 2017 e aponta pistas para uma boa governação, avançando os que deviam ser critérios para a definição dos montantes dos orçamentos de cada autarquia. Fala ainda da injustiça que tem sofrido o Distrito de Caué e do sucessivo adiamento do processo de desenvolvimento de uma região que é considerada a mais pobre do país.
Sociedade Civil STP: Podia nos esclarecer o que é um orçamento?
Américo Pinto: O orçamento é um instrumento através do qual se encontram plasmadas as previsões de despesas e receitas para um país ou instituição, e as formas de aplicação dessas previsões. Esse instrumento regula a alocação de verbas para diversos tipos de acções para o horizonte temporal do orçamento. Normalmente, o orçamento das Câmaras são 12 meses.
SCSTP: Qual foi o nível da execução orçamental da Câmara de Caué em 2017?
AP: A grosso modo, a execução orçamental atingiu 60%. Mas, é preciso dizer que há dois tipos de orçamentos: orçamento de despesas correntes que é para o funcionamento regular da instituição e orçamento de investimentos que tem aplicação sobretudo nas obras necessárias para as comunidades. Refiro-me às obras de construção civil, canalização de água, iluminação pública, reparações de edifícios e estradas, aquisição de equipamentos e meios rolantes para o funcionamento da instituição. No que concerne às despesas correntes, a execução foi de 100%. Estamos a falar de salários, reparações de viaturas, encargos, por exemplo, com a antena da emissão da TVS que está em Soledade, encargos com as deslocações de estudantes para o exterior para a formação, etc. No entanto, infelizmente deparamos com uma situação precária em termos de despesas de investimento para fazer obras.
Em 2017, nós submetemos à Direcção do Orçamento uma proposta de orçamento que foi aprovada pela Assembleia Distrital, na ordem de 35.000.000.000,00 Dbs (trinta e cinco mil milhões de dobras). Desse montante que estava na esperança dos residentes em Caué, o Governo só dignou levar para a aprovação na Assembleia Nacional cerca de 4.000.000.000, 00 Dbs (quatro mil milhões de dobras). De 35 para 4. Mas o problema não é só esse. Desses 4.000.000.000,00 Dbs (quatro mil milhões de dobras) que foram aprovados pela Assembleia Nacional e promulgado em forma de lei, nós só recebemos 750.000.000,00 Dbs (setecentos e cinquenta milhões de dobras). É qualquer coisa como 2% daquilo que as comunidades do Distrito de Caué precisavam. Se nós basearmos em 4.000.000.000,00 Dbs (quatro mil milhões de dobras) aprovados em forma de lei que se devia cumprir, estamos a falar de uma transferência do Governo Central para a Câmara de Caué na ordem dos 18%. Estamos a falar de uma execução orçamental de 18%. Daqui, podemos perceber a situação crítica que a Câmara de Caué enfrenta. E isto merece uma reflexão de todos os santomenses.
SCSTP: Nos sucessivos orçamentos, tanto do governo regional, do governo central e das camaras distritais, a execução do planeado fica sempre aquém. Em que medida estaremos a falar de orçamentos realistas?
AP: Independentemente de ser realista ou não, a elaboração do orçamento requer envolvimento da população. A população tem que se rever nos orçamentos que apresentamos. E ao se reverem nas propostas que as Câmaras Distritais apresentam, cria expectativa. Perante este cenário, nós estamos numa situação de execução orçamental bastante irrealista que, para além de criar todos os transtornos que dai podem advir, não contribui para o desenvolvimento de uma região. Isso adia o processo de desenvolvimento que devia ter uma dinâmica própria de uma região que é considerada mais pobre do país. Isso também traz consigo aquilo que eu não gostaria que perpetuasse no meu país: a falta de confiança nos governantes. Neste cenário, não tem como não trazer decepção e desconfiança aos eleitores deste país. Uma boa governação assenta numa boa distribuição de riquezas. Portanto, eu gostaria que houvesse alguma sensibilidade para que a distribuição das riquezas deste país não fosse apenas com base no número da população de cada distrito. Deveria considerar a extensão geográfica do território e o nível de pobreza de cada região. São todos aspectos que merecem a consideração e sensibilidade de qualquer governante que quer fazer uma governação.
SCSTP: Em que medida uma previsão irrealista prejudica a eficácia e eficiência do planeamento e até comprometer a orientação e o rigor que o orçamento requer?
AP: Normalmente, para fazer despesas de capital, despesas de investimentos em obras, recorre-se aos concursos públicos. São compromissos que a instituição tem para com terceiros que vão executar as obras. E não havendo rigor na alocação de verbas para as Câmaras, cria uma situação de descontentamento por parte das empresas prestadoras de serviço. É uma coisa que as Câmaras e, sobretudo o Governo Central, devem ter em conta para evitar situações menos felizes. Nós devemos trabalhar no sentido de garantir a boa governação e também a autoridade do Estado. Muita gente diz que o nosso Estado é um Estado Falhado. Uma das falhas reside nesse aspecto que refiro. Sendo 4.000.000.000,00 Dbs (quatro mil milhões de dobras) para despesas de investimento, isto devia ser alocado mensalmente parte de valor para que a Câmara possa honrar os seus compromissos e levar a cabo as tarefas que tem na sua agenda de desenvolvimento.
SCSTP: Como transmitir a confiança do Estado em cumprir as suas funções, num contexto de alguma dificuldade financeira?
AP: Eu acredito que independentemente de termos limitações financeiras, admito que é possível nós fazermos um melhor trabalho. Em casa, às vezes, fazemos uma previsão que pode falhar. Mas falhando essa previsão, a esposa e os filhos têm que saber. É preciso explicar o motivo pelo qual se compram duas mochilas e não três. Essa situação de dificuldade e de falta de diálogo, de envolvimento e de coordenação, leva a uma frustração cada vez maior. Eu não acredito que seja apenas por dificuldades financeiras. Eu não acredito que todas as instituições que têm verbas de despesas de capital receberam 2% daquilo que programaram fazer ou 18% daquilo que foi aprovado no OGE. Se esteve atento, aconteceu uma coisa muito interessante em Portugal. Houve cortes nos orçamentos das Câmaras Municipais. O actual Governo repôs os cortes que haviam feito três anos atrás. Isto é que eu considero rigor. Houve uma situação pontual de crise. Aquilo estava plasmado na lei e a lei é para ser cumprida. Então, anos depois, quando as condições melhoraram, fizeram o que tinham que fazer que é repor a justiça. Nós somos vítimas de sucessivos cortes nos orçamentos e o argumento que sempre apresentam é que o país não tem recursos. Mas nós não podemos continuar assim.
SCSTP: Esses cortes só são verificados na Câmara de Caué?
AP: Temos uma situação nossa. Eu não sei o que se passa ao nível das outras câmaras. E mesmo que eu quisesse saber, eu teria dificuldades. O que poderia nos ajudar é o funcionamento adequado da Associação das Autarquias. Precisamos revitalizar essa associação para ajudar precisamente a colmatar esses erros gravíssimos, para que as câmaras possam contribuir mais para o desenvolvimento. Para que as populações mais pobres, das zonas mais carenciadas, possam sentir um alivio com o desempenho das autarquias em São Tomé e Príncipe. Nenhum governo vai desenvolver um país sem a colaboração das autarquias e uma política séria de descentralização. Porque os mais carenciados não estão nos gabinetes, mas sim nas comunidades. Eles esperam, acima de tudo, a primeira força de intervenção que está sempre junto das comunidades: as Câmaras Distritais.
SCSTP: Qual a relação da Câmara de Caué com o poder central?
AP: São boas porque têm que ser boas. Podíamos rentabilizar da melhor maneira tudo aquilo que nós fazemos. Eu quero aproveitar para manifestar o meu descontentamento por certas atitudes. Essas atitudes são sentidas por todas as Câmaras e acredito que o Governo Regional não é excepção. Não é razoável a Câmara apresentar uma proposta de orçamento onde estão plasmadas as suas actividades e esse orçamento aprovado não ser respeitado. Alocação das verbas não se faz para as Câmaras, e as mesmas actividades que a Câmara se propôs fazer, às vezes, é o Governo Central que vai executar. É uma situação que é bom evitar. Temos vários exemplos: pólo desportivo, a estrada de cemitério, etc. Em relação a Estrada de Cemitério, a Câmara esteve três anos consecutivos na expectativa de realizar a obra, mas o Governo é que lançou a primeira pedra. Esse protagonismo não faz parte de uma boa governação.
Deve haver uma racionalização para que seja definido que tipo de obras ficam a cargo do Governo Central e que tipo de obras ficam para as Câmaras. Essas obras mais pequenas, obras nas comunidades devem ficar para as Câmaras executarem. Não deve haver receio da parte do Governo em alocar verbas para as Câmaras. E mesmo sendo as Câmaras a executarem, independentemente do partido no poder nas câmaras, sabe-se que quem alocou a verba foi o Governo Central. Então o Governo Central também ganha pontos. Eu já partilhei isso com governantes e com o próprio Primeiro-ministro. Independentemente de ser câmaras ou o governo a fazer, o que queremos é dar um empurrão a este país, eliminar a pobreza, queremos que as pessoas se sintam valorizadas pelos governantes. Independentemente de ser a Câmara ou o Governo Central, nós somos servidores públicos. E como servidores não devemos estar de costas viradas. Temos que ter uma linguagem única. Temos que saber trabalhar em equipa e de mãos dadas e deixar esse legado para a próxima geração. Precisamos ter objectivos comuns. E esse deve ser o sentimento que nos move enquanto dirigentes.
SCSTP: As Câmaras Distritais gozam da autonomia administrativa e financeira. Como é que esse estatuto tem sido aproveitado na busca de investimentos para o distrito de Caué?
AP: Nem tudo se consegue mobilizar. Mas algum passo foi dado. Neste momento, estamos a investir muito na formação de jovens que nunca tiveram essa oportunidade no nosso distrito. Anualmente, enviamos para o exterior cerca de duas dezenas de jovens para formação. Neste momento, temos dezenas de jovens na diáspora. Conseguimos isso graças a parcerias. O país, particularmente Caué, vai conhecer melhores dias com pessoas formadas e que poderão contribuir e avançar ainda mais o distrito e o país. No domínio de infra-estruturas não conseguimos apoio suficiente. Tínhamos em vista aquisição de equipamentos de bombeiros, mas tivemos um constrangimento. Tentamos mobilizar isso num período eleitoral em que as câmaras portuguesas já não tinham autonomia para poderem desenvolver acções nesse sentido. Neste momento, temos novos dirigentes a frente dos municípios em Portugal e vamos tentar ainda este ano essa pretensão. Portugal também enfrenta as suas dificuldades. Tentamos parcerias com outros países, como Angola. Eu fiz parte da delegação que foi a China e lá manifestamos a nossa vontade de desenvolver cooperação com municípios chineses, à semelhança daquilo que nós desenvolvemos com Portugal. Passamos essa preocupação ao Ministro da Administração Interna e se isso vier a acontecer, as nossas Câmaras poderão ter algum alívio e ajudar o Governo Central na mobilização de recursos para o desenvolvimento local.
SCSTP: Algumas obras importantes no distrito ainda não foram executadas. Porquê que a câmara de Caué não assume as obras do distrito no seu orçamento e, assim, facilitar a sua execução?
AP: A partir do momento em que a Câmara inscreve no seu orçamento alguma obra, ela já está assumida. Sendo assumida, não seria de bom-tom o Governo Central voltar a assumir. Há uma outra questão. Nós podemos assumir, mas dependemos da transferência da verba. E quando a transferência não é feita regularmente e de acordo com o orçamento, cria constrangimento. Sem ovos não se fazem omeletes. Com esse cenário, fica muito bem claro o motivo pelo qual algumas obras ainda estão por concluir.
SCSTP: A transparência da execução orçamental começa a preocupar algumas pessoas mais atentas. Está provado que a transparência na gestão de bens públicos é benéfica para o desenvolvimento. Qual a visão da Câmara de Caué em relação a isso?
AP: Eu felicito os nossos cidadãos que estão mais atentos a gestão orçamental. Já agora aproveito para felicitar a FONG e suas organizações pelo trabalho que tem feito nesse domínio. Trata-se de um trabalho novo na agenda da sociedade civil e hoje estamos a saber muito mais sobre questões orçamentais no país. Isso é muito bom. Porque não havendo esse exercício, cria vícios. Além disso, os cidadãos ficam sem informação sobre o que se está a passar. Quando falamos de desenvolvimento, precisamos ver que a informação quando responsável e assente na verdade é muito importante.
SCSTP: Sente que a população de Caué está com a Câmara?
AP: Está e sempre esteve com a Câmara. As pessoas precisam entender que o constrangimento não está na Câmara, mas sim na maneira como é feita a afectação e transferência de verba para a Câmara. É muito irregular. No ano passado, ficamos 14 meses sem receber nenhum centavo para qualquer tipo de obra. Quando o Grupo Parlamentar do MLSTP começou a fazer ronda pelas Câmaras para saber qual era a real situação, na semana seguinte é que nos fizeram o favor de desbloquear os 750.000.000 Dbs (setecentos e cinquenta milhões de dobras) e até hoje não recebemos mais nada.
Nestas andanças, tudo augura difícil!
ResponderEliminarNão se espera de um político com o “gabarito” do Presidente da Camara de uma região, seja em São-Tomé e Príncipe como em qualquer parte do mundo com as caraterísticas do nosso sistema político, manifestações de mágoas diante do poder central que não cumpriu os seus deveres.
Afinal, quem não cumpriu a sua obrigação?
Estou em crer que o caminho das lamentações, nestes moldes, constituem por si só, o projeto através do qual se pode vislumbrar os porquês do buraco em que nos encontramos