O Padre Miguel Gomes explica como é que a sociedade civil se deve organizar e posicionar-se perante o fenómeno “banho”. Fala ainda sobre os mecanismos que estão disponíveis para que a sociedade civil exija dos governantes prestação de contas e consolide a democracia.
Sociedade Civil STP: O que é a sociedade civil?
Padre Miguel Gomes: É muito difícil dar uma definição linear da sociedade civil. Mas podemos dizer que é um conjunto de instituições não-governamentais nacionais. Primeiramente têm que ser nacionais e não internacionais. São organizações que têm poder bastante para contrabalançar o Estado. E dentre outros objectivos que têm, visam persuadir o Estado a se tornar o único guardião da paz e dos interesses gerais do povo. Esse conjunto de organizações deve ser parceiro do Estado no desenvolvimento socioeconómico. Mas também podemos dize
r que a sociedade civil tem a ver com presenças de cidadãos agindo de forma colectiva em diversas áreas da vida quotidiana. Essas áreas podem ser cívicas, religiosas, culturais, artísticas, sindicais, associativas e voluntárias que formalizam os movimentos sociais. Aí podemos encontrar igrejas, clubes, associações, ONG’s, etc… Tudo isso junto vão trabalhar para a construção de uma sociedade melhor. Ainda podemos dizer que a sociedade civil é o lugar de lutas sociais, onde se conjugam exclusão e inclusão social. Luta pela hegemonia e resistência, confrontação de formas e etiquetagem bem como de representação social local e global, no passado, presente e futuro da vida de um cidadão.
SCSTP: Como é que um cidadão se deve posicionar perante o fenómeno “banho” nas eleições?
Pe. Miguel: Claro que a posição de um verdadeiro cidadão, aquele que está activo, tem que ser um não categórico ao “banho”. Quando eu digo não categórico, não é receber e depois votar em quem quiser. Eu acho que nós temos que ir muito além disso. O que eu proponho é que todos os cidadãos santomenses, ao receber “banho”, os envelopes ou as caixas ou de outras formas, tenham a coragem de devolver. Eu até iria muito mais longe. Que fossem corajosos de ir a comunicação social e denunciar esse fenómeno. Porque nós constatámos que as pessoas recebem e pela pobreza acham que podem receber e votar em quem quiser. Eu acho que não devia ser assim. Que tenhamos a coragem de devolver o conteúdo do banho ao partido político ou às associações ou a casa até da própria pessoa que teve a coragem de nos dar esse “banho”. Porque o que acontece é que muitas vezes nós recebemos, mas a consciência fica, porque eu recebi, querendo ou não eu sou influenciado. Mas se o cidadão que recebe o “banho” tiver a coragem que devolver ou até de denunciar os próprios corruptores não terão mais a coragem de dar. Mas isso tem que ser uma acção social, uma mentalidade que deve ser nacional. E não nos deixar influenciar, não nos deixar perder a nossa própria dignidade recebendo nada. Porque quem dá o "banho" não dá nem um terço daquilo que possui. Então temos que ter essa coragem de não só não receber mas também de denunciar.
SCSTP: Qual é a função e o valor acrescentado das organizações da sociedade civil?
Pe. Miguel: A sociedade civil, como nós sabemos, tem um papel inestimável no conjunto da sociedade. Ela articula os cidadãos em torno de uma causa social, independentemente de cada iniciativa privada. Portanto, a sociedade civil é imprescindível para o aperfeiçoamento do processo da democracia. Nós precisamos de consolidar a nossa democracia. São Tomé e Príncipe tem uma democracia um bocado avançada mas precisamos consolidá-la, e a sociedade civil tem um papel importante nisso. Mas a principal função da sociedade civil é formar consciência da cidadania. Mas depois tem outra função que é gestão de conflitos sociopolíticos. Nós, infelizmente, em São Tomé e Príncipe, temos uma grande instabilidade política que durante 35 anos se tem manifestado muito. A sociedade civil pode ter um papel muito importante nisso. Depois tem uma terceira função que é o desenvolvimento socio-económico nacional. Nós temos associações e ONG’s que trabalham nesse sentido. Uma quarta função é a construção da identidade do cidadão. A construção de uma identidade nacional é importante. Que o santomense se sinta com honra e orgulho a sua santomensidade em qualquer lugar onde ele estiver. Onde estiver um santomense, que sinta o orgulho de ser santomense. E nessas quatro funções que eu disse, eu acho que a função principal da sociedade civil e o seu valor acrescentado é a formação dessa consciência nacional. Enquanto não tivermos isso, não conseguirmos uma mentalidade santomense, muitas coisas vão ter que ser trabalhadas e construídas.
SCSTP: Acredita que isso é possível?
Pe. Miguel: Acredito. Sou um homem e padre muito esperançoso. Tudo é possível. É claro que não vamos construir uma sociedade de um dia para outro. Não vamos construir uma nação de um momento para outro. Mas se toda a sociedade civil tiver um plano de acção virado para isso conseguiremos. Claro que não vamos colocar metas em termos de datas, mas se assumirmos esse desafio, conseguiremos. Se outros países têm, por que que não conseguimos? Somos [um país] pequeno mas com potencialidades e podemos conseguir.
SCSTP: Qual o impacto da sociedade civil na arena política e económica do país?
Pe. Miguel: Como eu já sublinhei, a sociedade civil tem um papel imprescindível. Ninguém pode dizer que não precisamos da sociedade civil. Alias, nós sabemos que uma sociedade civil forte é umas das condições para termos um país forte. A participação do cidadão, dos actores mais relevantes no processo da tomada de decisão, formação e execução de políticas públicas nesses últimos tempos tem vindo a crescer e a afirmar-se. Tudo isso tem a ver com o exercício da cidadania que é preciso nós começarmos a debater um bocado sobre isso. Podemos dizer que a sociedade civil tem três papéis importantes. O primeiro é a participação eleitoral, podendo participar através das missões de observações e constituição de mecanismos paralelos de contagem de votos de modo a dar mais credibilidade ao processo. Mandar alguém como a sociedade para estar lá a ajudar a construir a credibilidade é muito importante. Um caso elucidativo pode ser as eleições que vamos ter e é bom que a sociedade civil se organize e se prepare bem, e que se mexa um bocado, porque se não mexer, digamos os partidos políticos ou aqueles que podemos perturbar um bocado podem nos deixar de lado se não os incomodarmos. E para tal é imprescindível o aumento dos observadores nacionais e os membros da sociedade civil nas comissões, para que a sociedade civil tenha um papel mais activo na educação cívica e na formação. É importante que a sociedade civil desempenhe esse papel de sensibilização a voto: vamos votar livremente, espontaneamente mas com o dever de cumprir o seu dever cidadão. Portanto, a participação da sociedade civil em eleições também traz outros valores acrescentados, como a promoção da paz e a transformação de conflitos políticos de maneira democrática, adicionando a transparência e credibilidade em processos eleitorais. Um segundo papel que a sociedade civil pode desempenhar é participação em mecanismos institucionais: na recuperação e conservação da natureza, recursos energéticos, mediação de conflitos, reforma administrativa do estado, nos programas de desenvolvimento nacional, projecto de desenvolvimento, saúde, educação, saneamento do meio, etc. Portanto nesse segundo aspecto que é participação nos mecanismos institucionais, é muito importante que a sociedade civil dê o seu papel na construção do desenvolvimento socio-económico de STP. Por fim, há um terceiro papel muito importante que é no desenvolvimento local. O estado até pode não estar lá, mas a sociedade civil estando lá, vai estar mais atenta e participativa no desenvolvimento local. Ai podemos encontrar a participação de grupos da sociedade civil em pleitos eleitorais e como eles conhecem melhor os candidatos, podem dizer: fulano serve e fulano não serve. Se nos bairros, nas aldeias, nas roças acharem que é esse fulano que pode nos ajudar um bocado no desenvolvimento da nossa zona, ele é escolhido. Na gestão dos recursos locais pode então participar nos projectos de desenvolvimento local. Mas também não nos esqueçamos que a pedra angular deste desenvolvimento é formação da consciência da cidadania. Se conseguirmos formar essa consciência da cidadania, o desenvolvimento local e nacional será muito mais fácil.
SCSTP: O que é preciso para termos uma sociedade civil vibrante?
Pe. Miguel: Do meu ponto de vista era preciso três ou quatro coisas importantes. Primeiramente é ter a consciência daquilo que é uma sociedade civil e a sua função. Porque muitas vezes corremos o risco de ter aquilo que eu chamo de sociedade civil fantasma. Segundo ponto é não utilizar a sociedade civil para o proveito próprio. Em STP, infelizmente, sabemos que é assim, fundar uma sociedade civil para interesses pessoais. Outra coisa é purificar a sociedade civil de toda tendência partidária. É um bocado difícil mas é possível. Os membros que estão na sociedade civil que tomem a consciência disso e não abraçar nenhum partido político para não se deixar influenciar por isso. Um outro ponto é investir nos objectivos e razão de ser da própria sociedade civil informada. Porque muitas vezes não há aquela formação consciente dos próprios membros da sociedade civil. Portanto, é preciso investir muito e a FONG está a fazer isso, temos que tirar chapéu nesse sentido, investindo muito na formação da sociedade civil para que tomem a consciência do seu papel fundamental. Em suma, para ter uma sociedade civil vibrante, ela deve-se voltar para a boa governança diária, não esperar só pelas eleições ou um assunto importante. Não podemos aparecer só quando há um grande evento como agora vai haver eleições. Diariamente temos que aparecer e formar essa consciência. No seu dia-a-dia, a sociedade civil deve empenhar na luta diária para impedir e combater a corrupção, garantir a representação justa de todos os grupos, interesses de ideias na sociedade. A sociedade civil deve lutar para obrigar o governo, diariamente, a prestar contas e para garantir que os detentores de cargos políticos continuem a obedecer as regras do jogo. Isso é muito importante para a consolidação da nossa própria democracia e que os nossos governantes joguem segundo as regras e as leis. Que não vão pra lá e façam o que querem.
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